A insuficiência materna e o vazio do corpo-mente: história natural do desenvolvimento das somatizações.

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                Neste dia, feito para comemorar as mães, fico pensando neste sujeito que preenche o meu dia-a-dia. Ante às dezenas de mães que tenho o privilégio de topar ou estar neste papel que exerço de Psiquiatra da Infância e Adolescência, vejo de todas: mães-autoritárias; mães-participativas, mães-irmãs; mães-amigas; mães de sangue; mães de sentimento; mães de desejo; mães pais; mães avós. Daí me deparo que ser mãe não é apenas ser um sujeito, mas, muitas vezes, faz-se nela um adjetivo, um verbo, uma frase; um texto.

                Freud, Lacan, Winnicot e outros pensadores da Psicanálise já falavam do papel primordial deste personagem para o desenvolvimento do ser humano, num formato de um todo indissociável: mente-corpo. O ser humano é uma das poucas espécies que não nasce suficientemente independente. Por isso, precisa de um outro até que assim se torne (independente tanto em termos de desenvolvimento motor, quanto em termos de desenvolvimento cognitivo e afetivo). Assim, seria com base na relação mãe-filho que o processo de “regulação mútua” das relações entre as pessoas se constituiria. Uma mãe “suficientemente boa” permitiria a internalização deste processo pelo filho, representando as relações na instância do ego. Do contrário, as experiências relacionais ficariam isentas de simbolizações, experienciando-se corporalmente, nos órgãos. Estariam aí uma das explicações para as somatizações, tão comuns em nossa atual cultura.

                Segundo Lacan, o bebê, ou mesmo um adulto regredido, vivenciaria o corpo como feito de pedaços dispersos. O todo, por outro lado, estaria alienado ao corpo da mãe, sendo confundido por ela. Seria através do discurso materno que o inconsciente da criança faria-se modelado, permitindo, assim, a integração do seu próprio corpo e a consequente desvinculação do corpo materno, abrindo espaço para dois seres e relações diádicas.

                Assim, um imago materno que exagera ou ausenta-se na função de conter ou desintoxicar o excesso de estímulos provindos das mais diversas fontes, não permitiria o desenvolver-se deste outro em si. Expressa-se, desta forma, os sentimentos através do corpo.

                Bion usa o termo “mães hipocondríacas” para falar daquelas que desvirtuam as angustias das crianças, dando uma localização orgânica para algo que pertence ao todo. E assim, inicia-se uma forma de sentir; através de órgãos que doem, sim, mas junto a eles doem os sentimentos, muitas vezes esquecidos.

                A utilização da criança como uma imagem de si (numa extensão narcísica) ou como um complemento erótico estaria no âmago da questão. Enquanto isso, a figura do pai seria descartável, desqualificada e ausente do discurso simbólico.

                Pessoas que se desenvolvem desta forma costumam apresentar uma afetividade esvaziada, sem cor, e costuma-se chamar as relações destas como “relações brancas”. Tal dificuldade de colorir daria acesso ao pensar apenas de forma concreta, através dos órgãos. Criar-se-ia, assim, uma história sem palavras, onde o corpo seria o cenário e, portanto, nele seria a expressão dos sentimentos.

                Mas volta-se ao personagem, este, indispensável para que as partes se tornem um todo e que a extensão se torne independente. Com tudo isso, venho cá pensando na beleza e na dificuldade de ser mãe. Ao mesmo tempo que semeia e vê crescer, sabe-se que não é para si; ao ver se desenvolver, sabe-se que isto trará desprendimento e diferenciação. Como então suportar esta dor e, ao mesmo tempo, continuar a semear?! Será que há uma forma de se ensinar a ser aquela mãe de Winnicott “suficientemente boa”?

                Creio eu que a resposta sempre será negativa. Ser mãe é deixar-se moldar pelas intuições; deixar-se amar generosamente; deixar que um outro (o pai) dê pitacos em sua obra quando assim julgar importante; é apaixonar-se; fundir-se; desligar-se; sofrer junto; preocupar-se com os longos, distantes e perigosos saltos que, por sinal, ensinou a iniciá-los. Ser mãe é estar disponível para ser o que um outro lhe exigir; é desprender-se de si para encontrar num outro a modificação de si mesma que muitas vezes não é aquela mais sonhada, mas é a desenhada de fato. Por fim, ser mãe, acho, é estar presente apesar de ausente, para que, na ausência, haja um ser que, enfim, consiga, por cima, olhar nos olhos, abraçar generosamente e, enfim dizer: “obrigado mãe por me permitir sentir como um todo, amar como um todo, estar como um todo e, independente e longe de ti, te fazer como uma parte de mim.”

Felipe Pinheiro de Figueiredo
Medico Psiquiatra da Infância e Adolescência.
CRM PR- 31918.
Doutorando Programa de Saúde Mental – USP

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