Ser hiperativo é normal. Pasmem. Isso mesmo. Tem-se falado muito do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), mas pouco se tem falado da inquietação normal e esperada da infância. Nos primeiros 4 a 5 anos de vida, certo grau de agitação é esperado em toda criança. Por um lado, as explicações podem ser dadas pela neurobiologia. Por outro, as próprias modificações ambientais são as responsáveis.
Biologicamente falando, acredita-se hoje em um papel do próprio processo de amadurecimento do cérebro. Estudos utilizando exames de imagem têm comprovado que regiões frontais do cérebro são as últimas a completarem esta formação. Acontece que os processos mentais mais complexos, como a atenção, o “freio motor”, a capacidade de planejamento e a correta execução do que foi planejado, são preferencialmente coordenados, por estas regiões. Daí o fato de crianças normalmente terem desatenção, hiperatividade e serem usualmente impulsivas, enquanto não alcançam essa maturação cerebral.
Em relação às mudanças ambientais, você já parou para pensar como ficamos “inquietos”, “agitados”, “desconfortáveis” quando algo de ruim nos acontece? Em alguns momentos, até tentamos esconder, mas muitas vezes estes sentimentos se tornam tão intensos que a resposta do corpo é impossível de ser camuflada. Se para nós é difícil, imagina para uma criança, que ainda não sabe nem nomear quando sente “ansiedade”, “tristeza”, “angústia”, e que ainda está aprendendo as regras sociais da “boa convivência”. Assim, fala-se, com razão: a criança sente pelo corpo (ainda mais que os adultos). Qualquer coisa que aconteça em seu meio pode trazer a esta criança um maior grau de agitação.
Ocorre que, algumas vezes, o grau em que estes sintomas acontecem atrapalham o desenvolvimento da criança, e o que poderia ser normal, não parece ser mais. Acontecimentos ambientais trazem um aumento tão grande das movimentações corporais que isto pode necessitar de uma ajuda. Assim, a criança pode chegar a ter dificuldades nas atividades acadêmicas ou na socialização com outras. É o que chamamos de “transtorno”.
Entretanto, esta “dificuldade” não é apenas da criança. Ela acontece por algum desnivelamento em uma balança na qual, de um lado, temos os próprios sintomas da criança e, do outro, as exigências da sociedade na qual ela vive. Portanto, para se falar adequadamente de transtornos na infância, precisamos conhecer estes dois lados: a criança e a sociedade.
Vivemos em uma sociedade na qual cada vez mais somos exigidos e, por isso, cada vez mais exigimos de nossas crianças. É prestar atenção na aula; fazer tarefas conforme as orientações dos adultos; ter horários; seguir regras; tirar as melhores notas, fazer atividades complementares. Cada vez mais exigimos mais cedo que as nossas crianças sejam adultas. Acontece que a natureza não permite e reclama destas exigências. Algumas crianças querem apenas ser crianças, e devem sê-los. Os pais devem perceber quando isso acontece, para suspeitar que o problema pode estar na sociedade que estamos impondo às nossas crianças (os próprios pais, a família, a escola, o bairro). Neste caso, rever a sociedade, adequando às necessidades do “ser criança”, é o melhor caminho. Cada criança tem seu ritmo e limite e é preciso respeitá-lo.
Já em outras ocasiões, o problema está com a criança mesmo. Apesar de todas as adaptações e de uma sociedade relativamente compreensiva, o nível de hiperatividade, de desatenção e de impulsividade de uma criança é tanto, que isto traz consequências extremamente danosas a ela. Estas crianças, não param quietas um só minuto; não focam em quase nenhuma atividade; interrompem os outros de forma muito freqüente; arrumam conflitos com colegas por poucas coisas. Quando isso acontece, o olhar precoce dos pais, percebendo as dificuldades de seus filhos, pode mudar o destino dos mesmos. Uma criança que seria rotulada como a “chata”; a que “arruma confusão”, a “desrespeitosa”; a “burra”, pode passar a ser o oposto disso, permitindo que sua inteligência, sua generosidade e seu amor ao próximo aflorem e seu desenvolvimento social seja o melhor possível.
Hoje, a psiquiatria da infância e adolescência leva muito em consideração o desenvolvimento da criança para definir o que é normal ou patológico na infância. O TDAH, por exemplo, tem sido interpretado muito mais como um transtorno relacionado a um atraso relativo na maturação cerebral e não como um “não-amadurecimento”. Desta forma, com o passar dos anos e com o passar do desenvolvimento cerebral, os sintomas vão normalmente sendo amenizados, até que, um dia, podem chegar a desaparecer. Desta forma, seria melhor dizer que a criança “está com TDAH”e não que ela “tem TDAH”, como costumamos falar.
Esta outra forma de ver os problemas comportamentais na infância destaca o papel dos pais, dos professores e da família para um desenvolvimento adequado da criança. Deve-se olhar e cuidar logo, antes que outros olhares desacreditem no potencial da criança. Quando isso acontece, mesmo quando os sintomas melhoram com o amadurecimento, fica difícil desfazer os rótulos. Uma criança corretamente avaliada e que recebe olhares atentos, se desenvolve de forma saudável e gera ricos frutos para ela mesma, para os pais e para a sociedade.
Felipe Pinheiro de Figueiredo
Médico Psiquiatra
Psiquiatria da Infância e Adolescência
Analista do Comportamento
Doutorando Saúde Mental – FMRP- USP
CRM-PR: 31918
Gostei muito do seu texto, Felipe! Não é sempre que nos deparamos com uma visão integrada do desenvolvimento e do que podemos chamar de sintomas numa criança. Considerar que muitas vezes o comportamento é a única maneira de uma criança expressar o que se passa com ela é fundamental. Somente a partir de um olhar mais amplo sobre a criança, inserida na família e na sociedade, é que o TDAH pode ser corretamente diagnosticado e os rótulos e a medicalização excessiva podem ser evitados.