“Ele morreu, mamãe?”

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Personagens de filmes infantis morrem mais que os de filmes adultos.

Mas é importante deixar a criançada assistir.

Camila Guimarães

Os pais estão reunidos na sala de TV para assistir, com os filhos pequenos, a um DVD de desenho animado. Subitamente, o programa aparentemente inofensivo virou um problema para o fisioterapeuta José Luiz da Silva. Ele foi surpreendido pela reação de Julia, sua filha mais velha, então com 4 anos, a uma das cenas.

O desenho era O Rei Leão, que conta como o pequeno Simba assume o trono no lugar de seu pai. Um inimigo ganancioso e traiçoeiro mata o pai de Simba – e seu corpo é descoberto pelo leãozinho. Ao assistir à cena, Julia chorou. Não parava de chorar. Sem conseguir consolá-la, os pais desligaram a TV e se viram obrigados a falar com a filha sobre a morte, ali mesmo, no sofá.

Os anos passaram e os pais de Julia se separaram. Silva se casou de novo e, com Maria José Maciel, teve Luiza. A menina, hoje, está com a mesma idade de Julia na época da choradeira. O pai decidiu que já era hora de Luiza conhecer a história de Simba. Mas, desta vez, precavido – e talvez traumatizado -, usou o controle remoto e pulou a parte da morte do velho rei leão. Luiza adorou o desenho e pediu para ver de novo.

A família viu mais uma vez, novamente sob a censura do controle remoto. Até que os pais tomaram coragem, combinaram um discurso a respeito da morte e sentaram com Luiza para assistir ao desenho sem cortes. No momento da cena mortal, tensão na sala. Silva e Maria José não desgrudaram os olhos da menina, esperando as lágrimas.

Que não vieram. Luiza não chorou nem perguntou a respeito do assassinato – em nenhuma das dezenas de vezes que assistiu ao DVD. Mesmo assim, os pais continuam atentos. “Procuramos saber antes do enredo dos filmes que ela vai ver e assistimos junto”, diz Silva.

Situações como a de Julia podem acontecer com mais frequência do que os pais gostariam. De acordo com uma pesquisa publicada no final do ano passado no British Medical Journal (BMJ), as famílias caem numa armadilha quando acham que desenhos infantis são menos mórbidos que filmes adultos.

Conduzida por psicólogos e psicanalistas de universidades do Canadá e do Reino Unido, a pesquisa comparou os desenhos para crianças com dramas adultos, todos sucessos de bilheteria. Cada produção infantil foi comparada com dois filmes adultos do mesmo ano – desde 1937, com o clássico Branca de Neve, até 2013, com Frozen.

Descobriram que cada personagem importante dos desenhos tem chance de morrer 2,5 vezes maior. E três vezes mais chances de ser assassinado. O estudo observa o número de personagens importantes, a frequência, e o tipo de morte.

“Decidi fazer esse levantamento depois que uma amiga me alertou para não assistir aos primeiros cinco minutos de Procurando Nemo com meu filho pequeno”, diz Ian Colman, professor de epidemiologia da Universidade de Ottawa, no Canadá. A mãe do peixe Nemo é engolida por uma barracuda no início do filme – mais ou menos como acontecia com a mãe de Bambi, abatida a tiros 61 anos antes.

Não é por acaso que o tema da morte aparece nos desenhos infantis. Geralmente, quem morre são os pais – e a ausência deles é, na verdade, a razão de ser do enredo. Por isso, acontecem quase sempre no início do filme.

“Quando o personagem principal fica órgão, a criança imediatamente se identifica com ela”, afirma Glaucia Faria da Silva, psicanalista e psicóloga do Hospital Infantil Sabará. “Ela aprenderá, ao longo do filme, de onde pode tirar forças para superar a dor da perda. Isso fisga a criança”.

Na pesquisa do BMJ, em filmes que mostram famílias, pais e mães têm cinco vezes mais chances de morrer nos desenhos infantis que em histórias para adultos. Não há dados sobre a morte só das mães, mas desde os contos de fadas ela é a ausência preferida.

Ou a mães não existe desde o início da história (como em A Bela e a Fera) ou morre (como em Bambi). Às vezes, é substituída por uma madrasta (Branca de Neve e Cinderela). “A mãe é preservada como a imagem da bondade e a madrasta personifica as coisas ruins”, diz Glaucia. “Isso ensina as crianças a lidar com seus sentimentos”.

Para isso serve a fantasia: para que as crianças aprendam a lidar com sentimentos reais. Por isso, o conselho dos psicólogos é deixa-las ver as cenas “fortes” dos desenhos. Mas há cuidados. “É preciso saber quando é a hora certa para conversar sobre a morte”, diz a psicóloga Maria Tereza Maldonato.

Crianças só entendem que a morte não tem volta perto dos 10 anos. Antes disso, os desenhos são um treino para aprender a lidar com sentimentos que ainda não estão claros. Algumas crianças, como Julia, corarão. Outras, como Luiza, não se incomodarão quando alguém querido morrer. Para todas elas, a realidade seria muito mais assustadora se não fosse o conto de fadas.

FONTE: Guimarães, C. Revista Época: Coluna Paradoxos e contradições: “Ele Morreu, mamãe?”; Edição número 869; 2 de fevereiro de 2015, p. 54-55.

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